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sábado, 19 de abril de 2014

TEXTO: BINÓCULOS PARA A MENTE


BINÓCULOS PARA A MENTE

Texto: Lilavate Izapovitz Romanelli
Doutora em Metodologia do Ensino de Ciências pela UNICAMP/SP e professora do Colégio Técnico e do Cecimig/UFMG
Revista: Presença Pedagógica
Julho/Agosto 1995
páginas: 38 - 41

“Uma das habilidades mais altamente desenvolvidas
na civilização ocidental contemporânea é a de dissecar: a decomposição de problemas em seus menores
componentes possíveis. Somos bons nisso. Tão bons que freqüentemente esquecemos de reunir as partes de volta”
(Alvin Tofler, na introdução ao livro de PRIGOGINES e STENDERS, - 1984)
    Por vezes nos damos conta de que a natureza de nossas reflexões sobre o átomo - “o invisível”- é semelhante à natureza de nossas cogitações sobre o universo - “o inatingível”. De longe as estrelas bem podem ser átomos. Não é o seu brilho resultante das reações nucleares entre prótons e nêutrons? Nesse sentido, reconhecemos serem de grande significado as considerações de Morin, escritas a propósito de anunciar novas maneiras de observar as coisas.
    "Num primeiro relance, o brilho de um céu estrelado nos espanta por sua desordem. Vemos uma selva de estrelas, espalhadas ao acaso. Contudo, se olharmos a segunda vez, uma inabalável ordem cósmica surge: a cada noite, aparentemente sempre e para a eternidade, existe o mesmo céu estrelado, cada estrela em seu lugar, cada planeta acompanhando o seu infalível ciclo. Mas, se olharmos pela terceira vez, uma nova e formidável desordem é introjetada naquela ordem: vemos então um universo em expansão, em dispersão, onde estrelas nascem, explodem e morrem juntas. Assim nós precisamos de uma espécie de binocularidade mental, pois nós vemos um universo que se organiza a si mesmo enquanto se desintegra.”
(MORIN, 1984).

     O homem sempre foi inquieto em sua busca por elementos permanentes. Ao longo deste último século, ele tem-se visto frente a espantosas descobertas sobre o universo como um todo e como partes. Antes, o fogo, a água; depois as moléculas. Quando da descoberta da radioatividade, os átomos não foram mais considerados como indivisíveis blocos construtivos dos materiais. A crença na permanência da matéria ficou abalada. Com os recursos atualmente disponíveis, tanto já se desenvolveu na investigação das partículas subatômicas que a “descrição” dos materiais passou a depender de concepções muito mais abstratas que a de próton, nêutron e elétron.
Como bem destacou Heisemberg, se desejamos compor uma imagem da natureza das partículas subatômicas, não podemos mais ignorar os processos físicos pelos quais obtivemos conhecimento sobre elas. Não podemos
    “falar do comportamento das partículas independentemente do processo de observação. Como uma conseqüência final, a lei, matematicamente, transformada em teoria quântica, não mais vai lidar com partículas elementares propriamente ditas, mas com o nosso conhecimento sobre elas. Não é mais possível perguntar se essas partículas existem ou não em espaço e tempo objetivamente, portanto os únicos processos aos quais podemos nos referir são aqueles que representam a interação das partículas com algum outro sistema físico como, por exemplo, o instrumento de medida.”(HEISEMBERG, 1962).
A matemática, portanto, é transparente quanto à descrição de nosso conhecimento sobre o comportamento de partículas elementares, mas não quanto a seu comportamento propriamente.
    Disso resulta pelo menos uma conseqüência na interpretação das equações. Sendo elas funções que podem até se transformar em figuras em perspectivas que promovem a visão tridimensional, a representação das funções (as figuras) passa a significar o comportamento das partículas. São assim geradas, por exemplo, as figuras que representam os orbitais s, p e d. Essas figuras são tidas, pois, como a representação do modelo da realidade. Sobre essa circunstância, Capra expressa claramente nosso temor, ao afirmar que
“na medida em que a nossa representação da realidade é muito mais fácil de se aprender que a realidade propriamente dita, tendemos a confundi-las e a fazer com que nossos conceitos e símbolos se tornem equivalentes à realidade.”(CAPRA,1983)
 Em boa hora devemos nos lembrar do aforismo de Einstein:
    “Até onde as leis da matemática se refiram à realidade, elas estão longe de construir algo certo; e, na medida em que constituem algo certo, não se referem à realidade.”
Sentimo-nos, atualmente, envolvidos com um conhecimento que não busca mais desvendar os segredos da natureza, mas sim, estabelecer um diálogo com o mundo. Ao nos dispormos nessa nova ordem mental, nossas reflexões promovem mais facilmente correlações entre a estrutura microscópica (atômica) e a estrutura macroscópica que é diretamente acessível à nossa percepção.
     Ainda que admitamos a possível instabilidade da concepção das partículas do mundo microscópico, as incertezas dos eventos naturais ou a dialógica presença da ordem e desordem, somos, definitivamente, herdeiros de uma cultura científica estabelecida pela busca do conhecimento da última e mais íntima partícula constitutiva dos materiais.
    Para aqueles que se atribuem a difícil tarefa de “ensinar o átomo”, é desejável que configurem seu trabalho no trânsito permanente entre o “conceber” a partícula e o “observar” os fenômenos que ocorrem com os materiais. Entre o imaginável e o perceptível, o invisível e o visível, o certo e o incerto, estaremos nos expondo ao exercício de conviver com o lógico e com o contraditório e, talvez, com o simples e o complexo ou com a ordem e a desordem.

Podemos, então, cogitar que há algo mais revelador na observação e estudo das transformações das coisas do que nas coisas, no processo de busca do conhecimento do que no conhecimento.
   O desafio na descrição de alguns parâmetros, algumas formas de abordagem que nos sirvam de passaporte entre os dois pólos de nossa natureza. Pensar (a partícula) e observar (os materiais) são ações interligadas e envolvem atividades que ultrapassam o uso de conceitos da visão. É preciso “operar” sobre objetos, sobre as coisas, construir ou desenvolver ações que nos devolvam às mesmas coisas (objetos e nós mesmos) afetivamente transformados (afetados). Esta reflexão nos remete às palavras de Bohr: a ciência sempre pressupôs a existência do homem e “devemos nos conscientizar do fato de que não somos simples observadores, mas também atores no palco da vida” (citado por HEISEMBERG, 1983)

Referências bibliográficas

CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. São Paulo, Cultrix, 1983.
HEISENBERG, Werner. The physicist’s conception of nature. London, The Scientific Book Guild, 1962. (tradução nossa)
MORIN, Edgard. The fourth vision: on the place of the observer. In: Disorder and Order: Proceedings of the Stanford International Symposium, Sept. 14 - 16, 1981. Edited by Paisley Livingston, USA, 1984. (tradução nossa)
PRIGOGINE, Ilya, STENDER, Isabelle. Order out of chaos - Man’s new dialogue with nature. New York, Bartam Books, 1984.